quarta-feira, 29 de agosto de 2012
O Inferno Egipcio
OS PRIMEIROS INFERNOS PARA CONDENADOS: OS INFERNOS TEMPORÁRIOS
É impossível determinar quando e onde apareceu a ideia de uma diferenciação dos infernos, ligada à noção de recompensa e de castigo, ou seja, de bem e de mal. Nas religiões antigas, que não se apoiam num texto conhecido, o bem e o mal relacionam-se acima de tudo com a ordem social, estando esta mesma ligada à ordem cósmica. O mal é o que concorre para destruir a ordem social, intimamente ligada à ordem divina. Ora, se os culpados de atentarem contra essa ordem são castigados na terra, todos eles acabam por sofrer a morte como destino comum. E, dado que se admite uma sobrevivência depois da morte, os maus continuariam a existir tal como os bons e a sua existência seria um constante desafio à ordem cósmica que exige o seu desaparecimento: é essa a ideia de uma -segunda morte», frequente nas antigas civilizações. Mas antes da aniquilação vêm os castigos divinos, que reproduzem no Além, no Absoluto, o processo terreno da punição-execução, apenas cumprida nesta vida de modo imperfeito: o sofrimento revela-se limitado, a morte é passageira. No outro mundo, são os deuses que infligem esses castigos.
O inferno egípcio: a desintegração dos condenados
A preocupação sobre o Além é importante para um egípcio como se revela em inúmeros textos, que vão da segunda metade do terceiro milénio ao período demótico do começo da nossa era, tal como em milhares de pinturas murais1. Durante três mil anos, os egípcios elaboram um refinado sistema escatológico, composto por diversas camadas de crenças que se confundem e quase se contradizem. Reside aí um traço comum a todas as concepções antigas do Além: razão, sensibilidade e imaginação acumulam-se no espírito dos homens inquietos.
Até onde é possível verificar, sabe-se que os egípcios acreditaram na sobrevivência dos mortos num mundo semelhante ao nosso, em que todos conhecem o mesmo tipo de existência, de forma atenuada e susceptível de uma progressiva degradação. O defunto vive no seu quadro habitual, utiliza os mesmos móveis e os seus objectos pessoais, mas as diferenças sociais são abolidas; todos trabalham na terra, mesmo o faraó, como se descreve nos frescos de Medinet-Abu, onde se vê Ramsés III conduzir o arado. Essa aparente igualdade perante a morte supõe todavia o cumprimento de alguns ritos funerários complexos de conservação do cadáver, sendo aqueles melhor assegurados se se pertence a uma classe abastada.
À entrada na morte, após uma viagem complexa através de montanhas e pântanos, lagos de fogo e muralhas, cujo mapa está por vezes representado sobre o sarcófago, o defunto sofre a prova capital do seu julgamento. A cena, tantas vezes representada, é bem conhecida: Anúbis procede à pesagem do coração, cujo resultado é registado por Tote, depois o defunto comparece diante do tribunal de Osíris, assistido por quarenta juizes, um por cada região administrativa. Recitam-se então as fórmulas do célebre Livro dos Mortos, passando em revista todas as más acções e declarando as que não cometeu: «Não cometi nenhuma fraude contra os homens. Não atormentei a viúva, nem menti perante o tribunal. Não conheci a má-fé. Não impus a qualquer capataz que os trabalhadores fizessem mais do que deviam fazer em cada dia. Não fui negligente. Não fui preguiçoso. Nunca cometi o sacrilégio. Não prejudiquei o escravo junto do seu amo. Nunca passei fome. Nunca chorei. Nunca matei. Nunca roubei as ligaduras ou provisões dos mortos. Nunca usurpei a terra. Nunca tirei o leite da boca das crianças. Nunca desviei um canal. Eu sou inocente! Eu sou inocente! Eu sou inocente! (...) Ó juizes, neste dia de julgamento supremo, deixai que o defunto regresse, porque ele não cometeu qualquer pecado, nunca mentiu nem praticou o mal, mas viveu no seio da verdade e alimentou-se da justiça. Os homens dizem o que ele fez e os deuses regozijam-se (...). A sua boca e as suas mãos são puras.»
Que significa esta litania que se faz acompanhar de fórmulas de auto-satisfação? Não se trata, claro, de uma tentativa para iludir os juizes, fazendo passar-se por um justo e negando as suas faltas. A frase de introdução nessa fórmula — «separação de X com todo o mal que fez» — leva a pensar que tal recitação equivaleria a uma purificação, rejeitando o defunto para lá de si mesmo todas as formas do mal
De uma civilização a outra, a lista dos pecados revela-se notavelmente constante: negligenciar os deveres para com a divindade, roubar, matar, cometer o adultério, enganar os outros, lesá-los seja de que maneira for, mentir, não ser de um modo geral solidário com os outros homens. Essas faltas não podem ser sancionadas na terra porque muitas delas são secretas e deve livrar-se delas após a morte. A declaração de inocência do Livro dos Mortos seria assim o equivalente de uma confissão e de uma renúncia a todas as formas do mal. Mas é também o reconhecimento da culpabilidade geral dos homens: cada qual cometeu essas faltas pelo menos uma vez na sua vida. Mas observemos aqui o papel do defunto: cabe-lhe mostrar que renuncia ao mal e isso mesmo depois da sua morte, porque esta não é o ponto final para lá do qual nada se pode mudar; o defunto não é um acusado passivo que aceita o julgamento, sem defesa, tal como aparecerá noutras religiões. Alguns egiptólogos pensam que esta cena do julgamento seria um rito de purificação que se realizaria algum tempo antes da morte, com a participação do moribundo.
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