De facto, o seu primeiro filme,
hoje em dia considerado justamente como um clássico do cinema, “Night of
the Living Dead” não é o primeiro a abordar a figura do zombie. À
partida, o zombie está fortemente ligado a uma mistura de realidade e de
crenças populares, as suas raízes provêm geralmente da magia negra
praticada em certos países como o Haiti, que o apresenta como um
instrumento à mercê de um mestre, que o domina graças aos seus poderes
ocultos. Alguns filmes farão então a ponte entre essa figura do zombie e
a sua representação no cinema, como “White Zombie” (1932) de Victor
Halperin com o mítico Bela Lugosi ou ainda “I Walked with a Zombie”
(1943) de Jacques Tourneur. No encalço desses filmes, a produtora
britânica Hammer Film, que dará cartas no género fantástico nos anos 50 e
60, também contribuiu para o mito com algumas produções, nomeadamente
“The Plague of Zombies” (1966) de John Gilling, ou seja, dois anos antes
do filme de Romero, mas finalmente sem nunca abdicar da tradição
gótica, marco de fabrico da firma.
Nesse enquadramento, é portanto
um pequeno filme vindo de nenhures que vai apanhar de surpresa toda a
gente, redefinindo por completo a figura do zombie e dando uma nova cara
ao terror moderno. Próximo do documentário e vincando mais
profundamente a conotação de metáfora social intrínseca à figura do
zombie, “Night of the Living Dead” nasceu e o cinema de terror nunca
mais foi o mesmo.
Ano: 1968
Realização: George A. Romero
Argumento: George A. Romero e John A. Russo
Fotografia: George A. Romero
Montagem: Brian Huckeba, George A. Romero e John A. Russo
Música: Scott Vladimir Licina
Elenco: Duane Jones, Judith O'Dea, Karl Hardman, Marilyn Eastman, Keith Wayne, Judith Ridley e Kyra Schon
Uma fome de cinema
No final dos anos 60 em
Pittsburgh, George A. Romero, formado em desenho e pintura, sempre teve
veleidades de ser realizador de cinema. Como muitos cineastas, a paixão
começa desde criança quando Romero descobre os filmes fantásticos de
Jacques Tourneur, as produções Universal e os seus monstros clássicos,
“The Thing From Another World” (1951) de Christian Nyby e Howard Hawks
como também todas essas bandas desenhadas de terror da EC Comics.
A sua primeira tentativa, no
princípio da década de 60, não resultará e o seu ambicioso
“Expostulations”, filme dividido em segmentos, nunca será concluído. Mas
essa tentativa terá o mérito de permitir a Romero constituir a sua
primeira sociedade de produção, Latent Images, cujos sócios serão
simplesmente os seus amigos todos. A firma vai então especializar-se na
produção de documentários industriais e conseguir uma saúde financeira
razoável.
É assim à volta de uns copos
entre George Romero, John Russo e mais alguns que surge novamente a
ideia de tentar realizar uma primeira longa-metragem, mas, com toda a
evidência, a impossibilidade de arranjar um financiamento em Pittsburgh
para um filme realizado por totais desconhecidos complica a
concretização de um tal projecto. Porém, Russo decide investir todas as
suas economias e está convencido de que se pelo menos dez pessoas
consentissem em dar uns 600 dólares cada uma, seria possível rodar um
pequeno filme de terror. Romero entusiasma-se logo pela ideia, antevendo
logo a possibilidade de concretizar o seu sonho. Lógico então que
Romero e a sua banda se voltem para a Latent Images para conseguir o tão
desejado financiamento. Todos, ou quase, são postos à contribuição e a
equipa de produção está completa (contando com Russell Streiner, Karl
Hardman e Marilyn Eastman, figuras que se revelarão muito importantes,
sendo que acabarão, entre outras coisas, por representar algumas das
personagens principais do filme!), dando nascença à firma Image Ten.
Image Ten lança-se assim na
produção de um filme de terror de muito baixo orçamento, cuja ideia de
partida deve-se a George Romero. Fortemente inspirado no romance de
Richard Matheson, “I Am Legend”, Romero escreveu alguns anos antes um
conto que nunca foi publicado, mas que servirá de base ao script. O
primeiro argumento chamado “Anubis” é dividido em três partes: a
primeira passa-se numa quinta onde todos os seus habitantes serão
devorados pelos mortos vivos, a segunda seguirá as pisadas de um grupo
de comandos em caça dos zombies e a terceira centrara-se sobre um
sobrevivente ferido perseguido por uma horda de zombies, acabando por se
refugiar na quinta da primeira parte. Por razões monetárias, Romero
concentra a sua história somente na primeira parte e “Night of the Flesh
Eaters”, primeiro título escolhido, entra em produção em Junho 1967.
Devido a uma similitude demasiado grande com o título do filme de 1964
de Jack Curtis “The Flesh Eaters”, Image Ten decide-se finalmente por
“Night of the Living Dead” e, com um budget ridículo de apenas 114.000
dólares, Romero pode então começar a rodagem, que durará uns longos 7
meses, do que se transformará mais tarde num filme de culto.
A revolução em marcha
É quase sem querer que o jovem
George A. Romero inscreve o seu nome nas lendas da 7ª Arte, sendo ele o
primeiro a dizer que não queria conscientemente transmitir qualquer tipo
de mensagem através de “Night of the Living Dead”, mas o cineasta é já
nessa altura um inteligente e feroz observador da sociedade do seu país
e, consciente ou inconscientemente, o grande sucesso do seu primeiro
filme é precisamente ser um reflexo puro e duro, sem concessões algumas,
das mentalidades de uma época que o realizador porá em perfeita
concordância com um trabalho formal que revolucionará pura e
simplesmente a visão do cinema moderno, que se irá desenvolver nas
décadas seguintes.
CONTINUA
CONTINUA
Com um único filme, feito com um
orçamento próximo do zero e com uma equipa integralmente composta de
novatos ou quase (inclusive o próprio realizador), Romero vai não só dar
a sua versão da figura do zombie, que será até hoje em dia a visão
padrão do morto-vivo cinematográfico, como também operar uma pioneira
transição entre o cinema fantástico dos anos 30/40 e o cinema moderno,
distinguindo-se por um selvagem sentimento de liberdade e de
irreverência. É linear, George Romero reinventa o medo no cinema! Um
medo que nasce da nossa realidade quotidiana, onde o mal pode vir do
vizinho do lado, onde a paranóia afasta os homens uns dos outros, onde a
cor de pele pode ser sinónima de perigo, um retrato de uma época por si
só assustadora, que mostra uma sociedade em plena mutação caminhando
para uma total inversão de valores e que finalmente continua actualmente
a afundar-se cada vez mais num marasmo inextricável, fazendo com que o
impacto e a visão de “Night of the Living Dead” estejam intactos ainda
hoje.
Quando Romero faz a sua primeira
obra-prima, os Estados Unidos acabam de viver o choque causado pelo
assassinato do seu presidente, John Fitzgerald Kennedy, o país entra num
clima de total suspeição e o fim de uma era de prosperidade económica
(também a nível mundial) está a chegar. O contexto social é então
profundamente marcado pelo início da guerra do Vietname e pelas
primeiras reivindicações raciais de grandes líderes negros como Martin
Luther King e Malcolm X.
A horda de zombies canibais,
cuja única maneira de matar é destruir os seus cérebros, como também a
pequena comunidade que se encontra, devido às circunstâncias, fechada
numa quinta perdida no meio de nenhures, são portanto a tradução no ecrã
dessa sociedade dos anos 60, anunciadora duma década de 70 de crise e
niilismo, cuja transição para uns anos 80 reaganianos dominados pelo
capitalismo descontrolado e pelos yuppies será retratada mais uma vez de
forma visionária dez anos depois em “Dawn of the Dead”.
A visão de Romero é nesse
aspecto tão negra como o preto & branco que utiliza para filmar a
sua obra de fim do mundo. Não há esperança neste universo descrito pelo
génio de Pittsburgh e ninguém merece ser salvo. Como é o caso destes
zombies, símbolo do nosso conformismo e docilidade, reflexo de nós
próprios sempre prontos a seguir estupidamente o rebanho, sem
questionar, sem pôr em causa, escravos que somos das nossas vidinhas
supostamente seguras. Mas o mesmo também se verifica com os humanos
fechados na casa, onde Romero compõe um microcosmo mais ou menos
representativo de todas as classes sociais, com a loira aparentemente
bem na vida, o negro imponente com necessidade de se afirmar, o
casalinho de jovens namorados e a família de classe média com o pai, a
mãe e uma filha. O cineasta recusa evidentemente qualquer tipo de
maniqueísmo na descrição dos comportamentos das suas personagens e
aposta na credibilidade absoluta das suas reacções aos acontecimentos,
desenvolvendo uma verdadeira psicologia, dando uma espessura dramática
inesperada ao seu filme. Não há portanto aqui heróis ou verdadeiros
vilões, mesmo se a personagem Harry aparece como execrável e
individualista, mas nem sempre o que diz está errado como quando
antecipa que o plano para sair da casa só pode fracassar.
Da mesma forma, a personagem do negro
Ben é nitidamente a figura mais forte, corajosa e sensata, mas isso não o
impedirá de se mostrar tirânico e impiedoso, seguindo somente a sua
ideia e não hesitando em matar Harry quando esse puser a sua vida em
perigo. Aliás a escolha de um actor negro para o papel principal, se
como já o disse várias vezes o próprio George Romero não foi
premeditada, dando o papel ao melhor actor das audições, acaba por se
revelar decisivo na ressonância do filme com a realidade social da
altura e também de um grande modernismo, fazendo do actor Duane Jones um
dos primeiros negros no papel principal de um filme. Na sequência desse
facto, Romero continuará nos seus filmes de zombies a dar papéis de
revelo a actores negros, sempre símbolos de revolução e mudança.
Essa falta de maniqueísmo e esse
niilismo latente culminarão então num final brutal e surpreendente que
marcará duradouramente os espíritos. Última facada numa sociedade doente
que já não consegue diferenciar zombies e seres humanos, Romero mata
todas as suas personagens, mostrando como o regresso à ordem anterior é
agora impossível, não há volta atrás a dar, o caos instalou-se e mesmo
se temporariamente a normalidade parece estar restabelecida, nada será
mais falso e fica uma terrível incerteza, qual o mais perigoso, o ser
humano ou o zombie? Romero responderá progressivamente a essa pergunta
ao longo da sua saga dos mortos-vivos, com constatações cada vez mais
perturbadoras que alcançarão o auge no seu próximo “Land of the Dead”,
quase 40 anos depois.
Zombies e consequências
Formalmente, George Romero
revoluciona também o género, validando as suas fortes temáticas com um
aproveitamento máximo do seu orçamento microscópico. A escolha do preto
& branco, primeiramente motivada por razões financeiras, é ideal
para instalar a atmosfera que o cineasta pretende. Resultado: um filme
crepuscular, claustrofóbico, onde o apocalipse paira em cada esquina. É
isso que traduz em imagens a visão de Romero de uma sociedade em plena
degeneração. O espectador sente-se vulnerável e prisioneiro desta casa,
como os protagonistas, um lugar que pouco tem de seguro e apaziguador
mas representa sim muito mais uma ratoeira. O realizador filma todos os
recantos do seu praticamente único cenário com movimentos clássicos e
amplos, uma câmara aérea e livre mas de uma perturbadora tranquilidade
que contrasta terrivelmente com o horror dos acontecimentos,
multiplicando o efeito de medo e deixando antever que a irrupção dos
zombies pela casa a dentro pode acontecer a qualquer momento, a qual
chegará de forma quase libertadora e sobretudo inelutável.
Participando nesta visão
panfletária e profundamente pessimista da sociedade, não podemos ignorar
a figura do zombie imaginada por George Romero. Mais uma vez as
restrições orçamentais vão ditar o visual dessa ameaça maior do filme.
Primeira escolha, o desconhecido Tom Savini não pôde participar no filme
conforme o desejo do cineasta, devido à obrigação de ir para o Vietname
como fotógrafo de guerra. Fica para a próxima e todos nós sabemos como
Savini desde então se tornou numa lenda na área dos efeitos especiais de
maquilhagem, demostrando todo o seu talento precisamente em “Dawn of
the Dead” e “Day of the Dead” mas também como realizador do mal amado,
mas não menos interessante, remake em 1990 de “Night of the Living
Dead”. É então Karl Hardman, para além de ser produtor e intérprete do
detestável Harry Cooper, que se ocupa dos efeitos de maquilhagem. Os
zombies de “Night of the Living Dead” não são portanto muito trabalhados
mas, paradoxalmente, é isso mesmo que os torna particularmente
inquietantes. Não são muito diferentes de nós, o que terá uma
fundamental relevância no final, são só canibais! E aqui, Romero choca
para época quando filma em close-ups audaciosos, os festins antropófagos
de monstros (parecidos connosco) esfomeados, cujo único objectivo na
existência é encher a pança que nunca parece estar satisfeita. Aliás, o
cineasta criará se calhar o zombie mais aterrador da história do cinema
com a criança Karen, filha do casal Cooper, que perto do final se
transformará em zombie implacável, assassinando de forma brutal os seus
próprios pais, numa cena de alta tensão que ainda hoje põe os nervos em
franja a qualquer um.
Romero também prefere deixar
algum mistério sobre o que se está a passar e revela progressivamente,
com cenas onde os protagonistas estão a ouvir rádio ou a ver televisão,
uma possível origem do fenómeno (muito longe das habituais origens de
bruxaria das Caraíbas) e as regras que regerão os filmes de zombies nos
anos a seguir. Esse clima de incerteza, amplificado por umas filmagens
barrocas digno do melhor cinema gótico mas realista, com uma câmara
caracterizada pela sua mobilidade e precisão, que fará muitos
discípulos, acabará por entronizar “Night of the Living Dead” para o
panteão dos grandes clássicos do cinema e George A. Romero como grande
mestre do filme de terror moderno.
Ironia do destino, mas exemplo trágico
que demonstra perfeitamente como “Night of the Living Dead” conseguiu
uma perfeita concordância com a sua época, uma vez a pós-produção
terminada, Romero leva a cópia zero do seu filme para Nova Iorque em
busca de um distribuidor no dia 4 de Abril 1968, dia que será o dia do
assassinato de Martin Luther King!
Muitos serão aqueles que
recusarão o filme de Romero, mas finalmente o cineasta consegue um
contrato com a Continental Films, sucursal da Walter Reade Organization.
Exibido pela primeira vez em Pittsburgh no Fulton Theatre dia 02 de
Outubro 1968, o filme tem direito a uma standing ovation e a aplausos
que nunca mais acabam. Como é óbvio, contrariamente ao crescente sucesso
público do filme, a crítica da altura chacina o filme, mesmo se mais
tarde, fará uma volta-face obrigatória face ao seu estatuto de culto
adquirido ao longo dos anos.
Em termos financeiros, “Night of
the Living Dead” revela-se um excelente investimento. Com um custo
inicial de 114.000 dólares, o filme rende cerca de 20 milhões de dólares
em mais de 30 anos, mas o problema é que grande parte deste dinheiro
cai sobretudo nos bolsos da Walter Reade. De facto, os direitos do filme
pertencem ao domínio público, qualquer pessoa pode explorá-lo
comercialmente sem ter que pagar nada a ninguém, devido a um erro crasso
da equipa de produção. A indicação do copyright foi posicionada
directamente por baixo do título, no princípio do filme, em vez de como é
costume, aparecer no genérico final. Quando o distribuidor modificou o
logótipo do título, o que aconteceu várias vezes, esqueceram-se
evidentemente de pôr novamente o copyright e George Romero e os seus
sócios de ficar sem receber um tostão! Apesar de um processo em tribunal
que acabará por obrigar a Walter Reade a pagar cerca de 3 milhões de
dólares à Image Ten, a mesma nunca receberá nada, tendo a distribuidora
ido à falência. Será preciso a produção de Romero e dos seus sócios do
já referido remake em 1990 de “Night of the Living Dead”, realizado por
Tom Savini, para recuperar partes dos direitos do copyright e finalmente
receber lucros do que sempre lhes pertenceu por direito.
Enfim, não são esses problemas
juridico-financeiros, nem os problemas de censura que teve em vários
países, que impediram este filme visceral e raivoso, extraordinariamente
avançado para o seu tempo e uma influência notável para toda uma série
de filmes que virão a seguir, de se tornar num autêntico filme de culto e
clássico da 7ª Arte, chegando a fazer parte da colecção permanente do
Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. “Night of the Living Dead” é
portanto um must para qualquer cinéfilo e continua terrivelmente actual
neste novo milénio, sem dúvida, facto próprio das grandes obras.
George A. Romero não iria
manifestamente concluir aqui o seu discurso lúcido e revolucionário, e
dez anos mais tarde, voltaria mais rebelde e furioso do que nunca,
levando ainda mais longe a sua visão com o indispensável “Dawn of the
Dead”.
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