Um relato dramático sobre a ingestão de tranquilizantes começou por agitar Bragança e caba por atingir a classe médica e laboratórios de produtos medicamentosos, que podem ser chamados a tribunal.
"EU DROGADO LEGAL ME CONFESSO" foi escrito em desespero de causa por um empresário comercial da cidade de Bragança e, segundo o seu autor, Nuno Álvaro Vaz, "é um desafio à classe médica e uma acusação aos laboratórios".
Em foco está a benzodiazepina, uma substância química normalmente presente emtranquilizantes e anti-depressivos.
No seu livro que, em apenas 20 dias, praticamente se esgotou só em Bragança, Nuno Vaz compara os tranquilizantes às drogas ilegais, pela dependência e pelas sequelas que produzem.
Os efeitos secundários das benzodiazepinas podem ser tão gravosos que levem a diversas incapacidades psíquicas e orgânicas dos consumidores e, na opinião de um psiquiatra por nós contactado, "estão por contabilizar os acidentes de viação e de trabalho que terão provocado".
Segundo elementos que colhemos, os laboratórios que produzem medicamentos à base de benzodiazepinas não avisaram devidamente os médicos acerca dos riscos da sua utilização, pelo que podem ser chamados a prestar contas pelas pessoas que se considerem lesadas.
A ONU ALERTOU
Há 30 anos que os portugueses ingerem benzodiazepinas para lutar contra a ansiedade, estados de insónia ou aflições de momento.
A Ordem dos Médicos nunca promoveu nenhum estudo ou debate, para analisar as consequências do uso destes produtos farmacêuticos.
No entanto, em 1984, houve um princípio de polémica sobre a inclusão, ou não, das benzodiazepinas no grupo dos estupefacientes e psico-trópicos. Um parecer da ONU recomendou restrição e controlo no consumo das benzodiazepinas, pronunciando-se a favor da sua inclusão no grupo dos estupefacientes, o que não foi levado em conta pelo Ministério da Saúde. A legislação mais recente, de Março deste ano, continua a considerar que, "dado tratar-se de produtos de grande utilização no campo clínico", e para evitar "incómodos e inconvenientes" para médicos, farmácias e utentes, para a sua obtenção basta o uso da receita normal, em vez da receita médica especial para estupefacientes.
Na prática, significa que qualquer cidadão pode abastecer-se de benzodiazepinas na maior parte das farmácias, automedicando-se e criando dependência.
No caso de Nuno Vaz, em que a entrada no mundo das benzodiazepinas foi feita por mão de médicos, as consequências colocaram-lhe, segundo nos diz, "a vida a prazo".
OS LABORATÓRIOS NÃO AVISARAM
"As benzodiazepinas devem ser os medicamentos mais receitados em todo o mundo, e em Portugal também", disse-nos o Dr. Afonso de Albuquerque, director de serviço do Hospital Júlio de Matos. Utilizadas como tranquilizantes e como hipnótico, no primeiro caso para diminuir a ansiedade e no segundo para induzir o sono, as benzodiazepinas, segundo nos informa, foram postas no mercado sem que a classe médica tivesse sido devidamente alertada para as consequências do seu uso.
"Só há poucos anos se começou a perceber que havia certas pessoas afectadas por este grupo de medicamentos em casos de dependência psicológica e fisiológica", afirma o psiquiatra.
Na sua opinião, "as companhias farmacêuticas não avisaram devidamente os médicos, na apresentação das benzodiazepinas, acerca dos riscos da sua utilização".
Durante três décadas, os tranquilizantes foram receitados tanto por psiquiatras como por cardiologistas, estomatologistas, e médicos de todas as especialidades. Afonso de Albuquerque está mesmo convencido de que o maior consumo de benzodiazepinas é feito em clínica geral e não em psiquiatria.
"Os laboratórios que as produzem têm, de certo modo, escondido a possibilidade de criar dependência", disse-nos. "Em Portugal já houve alguns debates sobre esse tema, mas entre os psiquiatras, que começaram a ser alertados pêlos seus próprios doentes".
"Tenho tido muitos doentes que já me chegam em estado de dependência das benzodiazepinas", confirmou o psiquiatra. "Num ou noutro caso, tive mesmo necessidade de os internar. Mas normalmente a desintoxicação é feita em regime ambulatório, com recurso a outro medicamento, para ir criando a desabituação".
TRANQUILIZANTES E ESTUPEFACIENTES
Nuno Vaz, que também se submeteu a diversas curas de desintoxicação, compara os efeitos das benzodiazepinas aos dos estupefacientes. Ouvimos a opinião do Dr. Afonso de Albuquerque:
"Ambos são produtos que actuam sobre o cérebro. Mas aquilo que se supõe ser o mecanismo de acção cerebral passa por vias diferentes, num caso ou noutro. Há sectores do cérebro que são receptores das benzodiazepinas, o que significa que o medicamento actua nessas zonas, e apenas nessas. E o estupefaciente actua noutras zonas. A condução do estímulo produzido pela benzodiazepina é diferente da produzida pêlos opiácios".
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
Cálculos por alto estimam em alguns milhares os portugueses profundamente afectados pêlos efeitos secundários dos tranquilizantes e anti-depressivos. Em Inglaterra já há grupos de utentes que procuram fazer pressão e obter indemnização dos laboratórios que lançam estes medicamentos no mercado sem aviso sobre os direitos colaterais.
Por nós contactada, a direcção da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, que representa as companhias produtoras de medicamentos, afirmou-nos que "cumpre estritamente a lei".
Nalgumas embalagens de medicamentos contendo benzodiazepinas verificámos que nas contra-indicações não consta nenhuma referência quanto ao facto de poderem produzir dependência.
Atentos ao problema, os médicos do Júlio de Matos estão a procurar substituir as benzodiazepinas de efeitos mais gravosos por outras de fabrico mais recente que, na prática, provocam menos sonolência. As doses, sob controlo, procuram ser mínimas, a fim de reduzir os riscos da habituação.
"É bom alertar as pessoas para não abusarem das doses prescritas", recomenda o psiquiatra, adiantando que "a própria classe médica ainda não está mentalizada para a gravidade deste problema".
Por isso, na sua opinião, "é muito positivo que surjam livros como este, que mostram que já há cidadãos neste país que estão alerta quanto aos seus direitos".
Que fique bem claro, se alguém ainda tiver dúvidas: as benzodiazepinas são uma droga devastadora, tanto ou mais que a heroína, a cocaína ou o haxixe.
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