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quinta-feira, 23 de julho de 2009

As primeiras descrições do Inferno Cristão - O Apocalipse de Pedro

Uma inquietude reina nas comunidades cristãs iniciais, agravada pela crença num próximo fim do mundo. Qual será a sorte dos maus depois do julgamento final? A imaginação dos primeiros fiéis, estimulada palas reflexões judaica e gnóstica, vai preencher as lacunas das Escrituras numa abundante literatura apócrifa, em que a imagem do inferno melhor se define.
Desde a conclusão dos livros canónicos, multiplicam-se os escritos complementares. A Didaqué, composta entre os anos 100 e 150 na Síria, é um dos mais antigos resumos da doutrina cristã, que por vezes foi atribuído aos apóstolos e alguns conferiram-lhe uma importância idêntica à do Novo Testamento. O texto foi redescoberto apenas em 1883, a partir de um manuscrito grego de 1057, mas revela-se ainda muito sóbrio no que respeita à escatologia: o regresso do Senhor, anuncia-se aí, a parusia, está próximo, «e então qualquer criatura passará pela prova do fogo», muitos hão-de ficar escandalizados e se perderão.
Muito mais pormenorizado é o Apocalipse de Pedro. Redigido entre os anos 125 e 150, na comunidade cristã de Alexandria, sem dúvida por um judeu convertido, esse texto é também muito respeitado na igreja primitiva, a ponto de Clemente de Alexandria no considerar como canónico, tal como o cânone de Muratori, que todavia assinala uma certa contestação a esse propósito. Viu-se excluído do cânone pelo Concilio de Cártago no ano 397, mas foi utilizado pela liturgia da Sexta-Feira Santa nas igrejas da Palestina até ao século V. Perdido durante muito tempo, o conjunto foi reencontrado apenas em 1910 numa tradução etíope e nele se encontra a primeira descrição precisa das penas do inferno, nitidamente influenciada pelo masdeísmo, pelo pitagorismo órfico e pelo judaísmo. Dentro de outra fecunda originalidade, esboça uma classificação das penas segundo os tipos de pecados:
«E eu vi também outro lugar diante desse, terrivelmente triste. Era um lugar de castigo. Os que eram punidos e os anjos que os castigavam traziam vestimentas escuras como o ambiente em certos sítios.
Alguns que ali se encontravam estavam suspensos pela língua, e eram os que tinham blasfemado contra o caminho da justiça, e por debaixo deles havia um fogo intenso que os atormentava.
Havia um grande lago cheio de lama a arder, onde se encontravam alguns homens que se tinham desviado da justiça e os anjos encarregados de os atormentar estavam junto deles.
Outros ainda, em que as mulheres estavam suspensas pelos cabelos sobre essa lama incandescente e eram aquelas que tinham optado pelo adultério.
Os homens que estavam ligados a elas por causa da vergonha do adultério encontravam-se suspensos pelos pés, a cabeça caída sobre a lama, e diziam: “Nunca quereríamos chegar a esse lugar”.
Via carrascos e os seus cúmplices, lançados num lugar estreito, inundado por terríveis répteis. Eram castigados por esses animais e assim se retorciam no seu tormento, tendo ainda sobre eles camadas de vermes que pareciam ser nuvens escuras, E as almas das próprias vitimas estavam ali e assistiam ao suplicio dos seus carrascos, dizendo: “Ó deus, como é justo o teu julgamento”.
Muito perto dali, vi um outro lugar fechado, em que escorria o pus e as imundícies daqueles que eram castigados e formavam uma espécie de logo. As mulheres jaziam no meio dessa sujidade mergulhadas até ao pescoço e diante delas estava um grande número de crianças prematuras, que gritavam e delas partiam jactos de chamas que atingiam as mulheres nos olhos. Eram as mulheres que conceberam fora do casamento e mataram os seus filhos.»
O Apocalipse de Pedro é o primeiro de uma longa e muito longa série de descrições de torturas infernais. Ele dá o tom e será sobretudo o que mais ultrapassará todos os outros na atrocidade dos pormenores. Os agiotas são mergulhados num lago de pus e sangue em ebulição, os falsos testemunhos sofrem o fogo na boca e mordem a língua. Cada qual recebe um castigo adequado e isso acontece já com a presença no inferno das crianças não baptizadas, que sofrem como os outros.

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